
José morava havia dezessete anos na pequena ilha de Lanzarote, um recanto paradisíaco situado no arquipélago espanhol das Canárias, próximo à costa da África, lugar que escolheu como refúgio quando, em 1992, entrou em rota de colisão com a Igreja Católia e o governo português pela proibição de sua mais recente obra. Mantinha um rotina rígida, supervisionada pela esposa diligente que, empenhada em possibilitar a reflexão e ócio necessários ao ofício do marido, ficava responsável pela administração da casa e tarefas de escritório. Aos que perguntavam, justificava escrever apenas duas páginas por dia - mesmo quando poderia produzir mais - com o argumento de que assim, ao cabo de um ano, teria 720 páginas prontas para serem publicadas. Acreditava que, desta forma, teria respeitado o sagrado período de depuração.
Nasceu pouco depois da Primeira Grande Guerra, na província de Azinhaga, região de Ribatejo, Portugal, mas ainda na primeira infância mudou-se para Lisboa. Filho da classe operária, teve sérias dificuldades para concluir os estudos, trabalhando como mecânico, desenhista, jornalista e funcionário público até que, enfim, assumiu o posto de direção em uma editora local e pode aproximar-se daquela que seria sua única e devota religião: a literatura.
José foi vencedor do prêmio Nobel, era ateu, comunista e casou-se duas vezes. Enquanto amealhava ardorosos admiradores que celebravam a exuberância do seu texto, acumulava, em larga proporção, detratores e inimigos pelas posições anti-clericais e anti-imperialistas que adotava publicamente. Certa vez, para desespero das ordens religiosas, afirmou que a Bíblia é "um manual de maus costumes, um catálogo de crueldades". Também foi acusado de anti-semitismo pela defesa contundente que promovia do Estado da Palestina, e foi duramente criticado pelas esquerdas quando retirou seu apoio incondicional a Fidel Castro após a execução de três cidadãos cubanos em 2003.
Mas, ao contrário do célebre poema de Drummond, este José tem identidade. Foi um dos maiores escritores da língua portuguesa desde que Camões a inventou e, talvez, tenha sido o último gigante a habitar o país do romance. O nome Saramago, apelido herdado do pai, transformou-se em título de nobreza na literatura mundial, chancela de refinamento e erudição e, sobretudo, referência pela forma - na palavra - e conteúdo - na vida. Ao longo de mais de sessenta anos de prática literária, nos ensinou a não temer parágrafos longos, mas também a respeitar a vastidão do mundo. Mostrou que travessões e aspas podem ser um entrave ao diálogo, ainda que menores que a intolerância religiosa e a opressão de classes. Demonstrou que o estoicismo é a pedra lapidar do caráter humano, e que a voz de um grande escritor jamais sucumbe ao exílio.
Apaixonado pela obra de Fernando Pessoa, escreveu em 1984 o livro "O ano da morte de Ricardo Reis", em homenagem ao poeta conterrâneo. A este se seguiram obras-primas como "Jangada de Pedra", o controverso "O Envangelho segundo Jesus Cristo" e "Ensaio sobre a cegueira", seu primeiro romance a ser transformado em filme. Ao seu último trabalho deu o nome de "Caim", recebido pela crítica como mais uma contestação aos dogmas católicos e já concebido em meio a graves problemas de saúde.
Se o legado do maior prosador lusitano do nosso tempo ainda não pode ser medido, a sua morte, instantaneamente, passa a ser lembrada. Não apenas como uma efeméride de resenhas literárias, mas como um grande acontecimento do mundo. E ainda que o Brasil seja pela sexta vez campeão de futebol, Marina Silva torne-se a primeira mulher negra a chegar ao Palácio do Planalto, ou um novo vulcão se lance sobre os céus da Europa, o ano de 2010, para os amantes de literatura, terá sempre um outro símbolo. Passa ser, de agora em diante, "O ano da morte de José Saramago".
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